Geralmente,
voltando-me da Zona Norte à Zona Oeste, viagem esta cansativa por si só, tendo
em vista minhas últimas duas horas sentada num ônibus lotado, passando calor,
sem ar condicionado e sem poder me locomover – a única coisa que podia fazer, e
fazia, era dormir – desço perto do principal shopping do meu bairro para,
então, pegar um outro ônibus para chegar à minha desejada cama ao fim do dia.
Os motivos eram muitos: preguiça e cansaço eram os principais, chegando até a uma
dor inventada. Porém, em um dia especial, a Fortuna me enforcou, laçando o meu
pé e revirando todo aquele dia já então muito ruim pior ainda.
Na
verdade, tenho que lhes confessar que um dos meus maiores medos era de
reencontrar pela rua meu ex. Tendo em vista meu atual namorado, como ele é e
meu amor por ele, não gostava nem de pensar na hipótese. E não foi o que a
Fortuna me preparou para esse dia? A roda girou e o que eu menos queria acabou
acontecendo.
Infelizmente
– ou felizmente, decida-se por mim, caro leitor –, ele pega o mesmo segundo ônibus
que eu, apesar de estudar na Baixada e eu Zona Norte, nossos ônibus tem
alguns pontos em comum, o dele passa na frente do shopping, tendo a
possibilidade de pegá-lo antes de mim, e o meu por trás. Na verdade, é
compreensível que ele pegue o mesmo segundo ônibus que eu para ir para casa;
moramos perto, não na mesma rua, mas em sub-bairros vizinhos.
Enfim,
cá estava eu subindo a escada do ônibus, fone de ouvido e pensamento ao longe,
que me deparei: a figura magra, alta mesmo que sentada, aquela pele de café pingado,
olhos e topete negro, mesma boca volumosa... Seus traços negros não lhe eram de
todo feios, mas desproporcionais a sua altura e magreza. Mesmo assim, os anos
lhe foram amigos: estava mais bonito sem espinhas na cara, embora tivesse ainda
a sombra do mesmo sorriso cínico que me apaixonara em outrora nos lábios. Ao ver-me
ele se assustou. Nunca imaginara me ver em um ônibus, ou melhor, NO MESMO
ÔNIBUS. Para dizer a verdade, também me espantei. Que mais poderia acontecer? Se
um meteoro caísse naquele momento sobre nossas cabeças eu teria mais certeza
que então: eu estava sem sorte. Logo me recompus; passando a roleta, dei um
sorriso e falei “boa noite”. Apesar de minha promessa ao meu atual, promessa
que dizia que nunca mais falaria com meu ex, sempre lhe disse que o
cumprimentaria caso o visse, afinal “mamãe me deu educação” – é o que eu dizia.
Ele nada
respondeu. Não insisti, sentei-me no final do ônibus e pus-me a ler. Apesar do
livro aberto, as palavras não me atingiam aos olhos; meus olhos reconstruíam um
passado que fez-me rir sozinha (e a mim mesma) no meio do ônibus. O passado se
torna cômico quando o futuro se torna presente. Lembrei-me de como ele era uma
faceta Bento Santiago e outra Dom Casmurro; ao início era inerte e bobalhão –
um dia, atrapalhou-se todo por causa de um beijo! E lho dei na bochecha. Era
cínico e irônico às vezes, mas, na verdade, o queria atenção. Lembrei-me de
tudo; de como o considerava (e acho que ainda o considero um pouco) um grande
amigo, quase um irmão, lembrei-me da sua tentativa falha de beijo roubado (logo
após, dei-lhe uma aula dizendo que não se pode roubar um beijo, não quando não
se acerta onde estão os lábios), lembrei-me do que nos fez namorados... até
lembrar-me dele pedindo que nos separássemos, apesar de tê-lo gasto dois anos
quase que implorando-me em namoro.
Então,
indaguei-me seu silêncio. Não quero escrever coisa que não sei, portanto não o
escreverei. Minto, tenho a hipótese que fosse minha última carta escrita:
escrevi-lhe dizendo que não sentia saudades nem queria mais vê-lo. Mentira.
Palavras ríspidas necessárias para o seu crescimento como pessoa – e como,
também, parte do cumprimento à minha promessa de nunca mais proferir-lhe a
palavra. Ele não via, mas eu o fazia mal: enquanto eu estive por perto, a
esperança – maior mal que Pandora libertou – o consumia, o devorava, deixava-o
em carne viva e sangue escorrendo. Admito que o fiz sofrer, mas quem nunca
errou? Caro leitor, não me julgueis, sou um manuscrito em produção, tendo por
vezes riscado meus pecados em busca de um refinamento maior a mim mesma. Um
amigo em comum nosso me confessou, mais tarde, que foi a partir dessa carta que
Bento Santiago virou para sempre Dom Casmurro. Sua amargura, dor e ódio por mim
resplandecia dos olhos que não pude ver, apenas sentia-os me consumir através
do micro-ônibus.
Até que seu
ponto chegou. E ele desceu. Tive vontade de pedi-lo perdão, mas dessa vez eu
era a inerte – ou estaria presa demais a promessa de meu atual? Não sei. Caso
quiser responder, sinta-se a vontade, tenho mistérios mais que nem eu, com o
passar do tempo, pude resolvê-los, apenas zombá-los.
Ana Luiza Pereira
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